O debate sobre segurança e cidadania que teve início, nesta terça-feira, em Cafunfo, onde ocorreram incidentes com várias mortes, visava o diálogo, mas ânimos exaltados quase puseram fim à discussão, onde o plano político quase se sobrepôs aos direitos humanos.
No salão 4 de Abril, onde o governador da província da Lunda abriu o debate procurando mostrar empenho na resolução dos problemas locais, falou-se de direitos humanos em contraste com uso excessivo da força policial, mas também de feitiçaria, mentiras e partidos.
Lúcia Silveira, defensora dos direitos humanos, abordou o uso das armas de fogo, lembrando que os “excessos da polícia são proibidos” e lamentou os níveis de “pobreza extrema” de Cabinda e das Lundas, regiões ricas em recursos naturais, mas onde a riqueza não serve para desenvolver as comunidades.
A activista sublinhou a necessidade de se “falar uns com os outros” e resolver os “problemas sem olhar para as politiquices”.
Entre o público, cerca de 500 pessoas entre as quais protagonistas dos acontecimentos de 30 de Janeiro, sociedade civil, polícia e autoridades locais e eclesiásticas, várias pessoas quiseram intervir no debate, motivando discussões acesas e a necessidade de apaziguar os mais exaltados.
Um cidadão queixou-se das autoridades que tiram a vida dos seres humanos “como se fosse de uma galinha”, enquanto outro referiu-se ao que aconteceu no Cafunfo como um acontecimento “doloroso”, questionando as instituições que “às vezes preferem falar a mentira”.
Outro participante falou em tentativas de manipulação da opinião pública e que os cidadãos não devem meter-se “em situações que colocam em risco a sua vida”.
“É verdade que a esse povo falta muita coisa, mas o caminho é longo, não é necessário recorrer à violência, não é necessário recorrer à feitiçaria, não é necessário levar mulheres nuas com panelas para fazer reivindicações”, referiu.
Outro habitante questionou se os representantes dos direitos humanos fazem parte de partidos ou devem ser neutros, afirmando que os da região “são todos da oposição”.
Além da clivagem política, foram visíveis divergências entre as autoridades tradicionais, com um soba a questionar a legitimidade do rei Mwatchissengue wa Tembo, e um ambiente tenso entre alguns populares.
Os ânimos exaltaram-se e o encontro esteve quase a ser suspenso obrigando o padre Celestino Epalanga a pôr ordem, lamentando o comportamento dos cristãos presentes, “pior do que os pagãos”, e a falta de respeito pelos mais velhos.
O subcomissário António Pinduka Melo Marques também alertou que a manter-se o ruído teria de ser interrompido o encontro, cujo propósito era “dialogar e ouvir”.
“Se calhar alguns estão com outras intenções e querem meter gasolina onde já há fogo e isso nós não vamos permitir”, avisou.
Em declarações à Lusa, a rainha Kia Mbamba no Luremo, (comuna do município do Cuango) elogiou a iniciativa, mas contestou os “rebeldes” que atacaram o Cafunfo, ecoando a versão oficial que descreve os incidentes como um ato de rebelião instigado pelo Movimento Protetorado da Lunda Tchokwe.
“É um partido de estrangeiros que nós não conhecemos, que vinha para nos agredir e invadir”, criticou, advogando que não pode haver a separação da Lunda Tchokwe.
A autoridade tradicional contou que tudo aconteceu de madrugada e sem aviso: “Muitos que vieram , vieram com arma de feitiço, vieram com a catana, vieram com martelo, vieram com a zagaia, vieram com tudo, a tropa viu que eles vieram para atacar a população para a Lunda Norte ficar Lunda Tchokwe”.
A rainha acrescentou que entre os que levavam armas encontrava-se também “uma senhora que estava nua com panela de feitiço na cabeça”.
“Então vieram lutar ou vieram marchar?”, questionou.
Ana Paula Eduardo, residente em Cafunfo, lamentou que as vidas humanas importem tão pouco na vila mineira.
“Há pouco ouvimos o discurso do governador a dizer que a vida humana merece direito. Isto no Cafunfo não existe, Cafunfo considera mais os animais do que as pessoas (…). No Cafunfo maltratam, matam e não investigam”, criticou.
A moradora afirmou ainda que pelo menos oito pessoas morreram no dia 30 (seis no próprio dia e dois corpos que apareceram posteriormente) e disse que ainda há pessoas à procura de familiares que se encontram desaparecidos.
“No Cafunfo, os direitos humanos não se fazem sentir”, lamentou Ana Paula.
Já Zacarias Imbangabela, morador no município do Cuanfo, questionou a concretização de obras e projectos como a reabilitação de estradas, uma escola de enfermagem e saneamento básico, salientando que na base das manifestações está a miséria da população
“A miséria que o município do Cuango vive é que nos leva a ficar revoltados”, desabafou.
“Nas campanhas eleitorais prometeram água, não vimos. Prometeram energia, não vimos. Prometeram estrada, não temos. Prometeram saúde, não temos, as promessas passadas não serviram para nada, queremos a realidade”, reivindicou.
As jornadas sobre Cidadania e Segurança Pública, organizadas pela Ufolo – Centro de Estudos para a Boa Governação, em parceria com o Comando Geral da Província Nacional, prosseguem na quarta-feira com um painel onde serão ouvidos depoimentos de líderes religiosos locais, participantes e testemunhas da ocorrência e familiares das vítimas.
Em 30 de Janeiro, segundo a polícia angolana, cerca de 300 pessoas ligadas ao Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT), que há anos defende a autonomia da região, tentaram invadir uma esquadra policial, obrigando as forças de ordem a defender-se, provocando seis mortes.
A versão policial é contrariada pelos dirigentes do MPPLT, partidos políticos na oposição e sociedade civil local, que falam em mais de 20 mortos e alegam que se tratou de uma tentativa de manifestação, previamente comunicada às autoridades, e que os manifestantes estavam desarmados.
O MPPLT luta pela autonomia da região das Lundas, no Leste-Norte de Angola.
A autonomia da região das Lundas (Lunda Norte e Lunda Sul, no leste angolano), rica em diamantes, é reivindicada por este movimento que se baseia num Acordo de Protetorado celebrado entre nativos Lunda-Tchokwe e Portugal nos anos 1885 e 1894, que daria ao território um estatuto internacionalmente reconhecido.
Portugal teria ignorado a condição do reino quando negociou a independência de Angola entre 1974/1975 apenas com os movimentos de libertação, segundo o movimento.
Fonte: Lusa